Na última terça-feira (6), a barragem de Nova Kakhovka, na
Ucrânia, foi destruída, liberando um enorme volume de água, no mais claro crime
de guerra até o momento nesse conflito. Como em qualquer evento após a invasão
da Ucrânia pela Rússia, existe uma guerra de narrativas em vigor, com troca de
acusações. Se não é possível afirmar categoricamente a autoria do ato, pode-se
analisar os impactos da destruição da barragem, as consequências e os eventuais
beneficiados.
A barragem havia sido construída na década de 1950, no rio
Dnieper, um dos maiores da Europa e que divide a Ucrânia ao meio. A barragem
tinha seis turbinas geradoras de energia hidrelétrica, 30 metros de altura e
pouco mais de 3 km de comprimento. Algo pouco comentado na cobertura sobre a
destruição da barragem é um aspecto histórico dela. Sua construção está
diretamente ligada ao aproveitamento das águas do Dnieper.
História
Esse processo incluiu a mudança de jurisdição da península
da Crimeia, que foi transferida da República Soviética da Rússia para a RS da
Ucrânia em 1954. Desde a independência da Ucrânia, em 1991, e, principalmente,
desde a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, esse processo de
transferência é debatido. Ele envolveu questões históricas, políticas e também
logísticas, já que a Crimeia, então da RS russa, era abastecida via território
da RS ucraniana.
Isso incluiu o suprimento de água potável, expandido com o
canal concluído em 1957. O canal abastecia cerca de 85% da água consumida na
Crimeia pré-2014. A fonte de água potável do canal é o reservatório da barragem
de Nova Kakhovka. Ou seja, o reservatório era a principal fonte de água potável
da Crimeia, cujo abastecimento está comprometido no longo prazo. Além disso, o
reservatório, que continha um volume de água de 18 bilhões de metros cúbicos de
água, também abastecia a irrigação agrícola, incluindo na Crimeia.
Como comparação, esse é o volume de água de 60% do
reservatório de Itaipu e maior que o Lago Superior, na fronteira entre EUA e
Canadá, o maior lago de água doce do mundo em área. Esses dados servem para
ilustrar que, embora a barragem em si não fosse uma construção gigantesca ou
tão importante em sua função hidrelétrica, seu reservatório era enorme e importantíssimo,
também pelo fato de que a água do resfriamento dos reatores da usina nuclear de
Zaporizhzhia, a maior da Europa, vinha do reservatório.
Impactos diretos
A consequente enchente ainda está apenas nas previsões, já
que a água continua avançando. Cerca de 40 mil pessoas serão afetadas
diretamente, com cidades e vilas inundadas no oblast de Kherson. Infelizmente,
ao menos oito pessoas já morreram como consequência. Milhares de animais também
morreram, incluindo todos de um zoológico localizado perto da barragem. Além
disso, as ilhas fluviais perto da foz do rio servem de local de reprodução de
espécies de aves, e a inundação compromete esse ciclo.
Também haverá um grande dano à vida aquática na região, já
que a inundação vai causar a morte de peixes, a destruição de locais de
reprodução e a mistura de água doce com água salgada na foz do rio,
prejudicando também a pesca. Outro problema, segundo o ex-ministro de Meio
Ambiente da Ucrânia Ostap Semerak, é que a, no caminho da água, estão depósitos
agrícolas de fertilizantes e combustíveis, que poderão ser levados pela enxurrada
e contaminar o Mar Negro.
Todos esses efeitos citados fazem com que autoridades
ucranianas e ambientais usem o termo “ecocídio” para se referir à destruição da
barragem, que também causa impactos de longo prazo, que necessitarão de um
grande esforço no pós-guerra, com grande custo econômico. A Ucrânia
responsabiliza a Rússia pela destruição, especialmente pelo fato de que a
barragem está sob controle russo, enquanto o governo russo alega que a
destruição foi causada por sabotadores ucranianos para responsabilizar a
Rússia.
Precedentes e motivos militares
Deixando as declarações de autoridades de lado, existem
precedentes no atual conflito de ataques a barragens. No início da guerra, em
fevereiro de 2022, a barragem de Karachunivske foi atingida por mísseis russos.
No mês seguinte, uma barragem bem menor, no rio Oskil, tributário do Donets,
que por sua vez é tributário do Don, foi destruída pelos russos. Em novembro, durante
a contraofensiva ucraniana no oblast de Kherson, a própria barragem de Nova
Kakhovka foi alvo de foguetes ucranianos.
Praticamente desde o início da guerra, ucranianos e russos
trocavam acusações de que o outro lado desejava explodir a barragem. A argumentação
ucraniana, além do fato de que a barragem estava sob controle russo, afirma que
as forças russas deliberadamente destruíram a barragem tanto como política de
“terra arrasada”, mas principalmente para inundar o rio na véspera da esperada
contraofensiva de verão ucraniana, que está ocorrendo nesse momento.
No oblast de Kherson, o rio Dnieper servia de linha de
contato, separando as forças russas das ucranianas. O alagamento dificulta a
ofensiva. Inclusive, campos minados foram alagados, fator que dificulta a
eventual recuperação posterior da área. O presidente ucraniano, Volodymyr
Zelensky, foi além e afirmou que a ideia era inundar a cidade de Kherson.
Também afirmou que a postura do administrador militar russo nomeado para Nova
Kakhovka demonstraria a responsabilidade russa.
O governo russo, por sua vez, afirma que o alagamento causa
danos muito maiores aos russos do que aos ucranianos. Esses danos incluem áreas
controladas pela Rússia, a destruição das defesas da região, como posições
fortificadas e campos minados, e o comprometimento futuro do abastecimento de
água potável à Crimeia. A destruição teria sido causada, segundo a Rússia, por
sabotadores, não por ataques a distância. Segundo diversos relatos, foi ouvida
uma grande explosão por volta das duas horas da madrugada.
O governo dos EUA, por meio do porta-voz do Pentágono,
afirmou que liberará imagens que provariam a responsabilidade russa no ato. De
fato, embora seja possível dizer que ambos os lados possuíam motivos militares
para a destruição da barragem, o fato dela estar sob controle russo torna as
forças russas mais suspeitas do que os ucranianos. O uso de alagamentos e de
destruição de barragens em guerras, inclusive, não é nenhuma novidade na história
militar.
Maior crime de guerra do conflito
O maior exemplo talvez seja o da região dos Países Baixos,
naturalmente alagáveis, com diversos episódios desde a Idade Moderna. Durante a
Segunda Guerra Mundial, soviéticos, chineses e nazistas usaram a tática de
alagamento para deter avanços inimigos. Também durante a guerra, os britânicos
desenvolveram técnicas e táticas para destruir barragens alemãs no vale do
Ruhr, os “Dambusters”. Na década de 1970, os argentinos temiam que Itaipu fosse
uma “bomba d’água” direcionada a Buenos Aires.
Como consequência desse processo histórico, em 1977, foram
acordados os dois Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra. Dentre as
diversas determinações, o artigo 56 do primeiro protocolo fala especificamente
da proteção de barragens, que não podem ser atacadas, mesmo com objetivos
militares, caso esse ataque cause consequências perigosas para a população, o
ambiente natural ou a capacidade de subsistência. A destruição da barragem de
Nova Kakhovka é claramente um crime de guerra.
O atual conflito já viu diversas atrocidades e denúncias de
atrocidades, mas nenhuma na escala da destruição da barragem. Não se trata de
anular a dor dos indivíduos afetados pelos outros episódios, mas de constatar a
escala atual de destruição em um ato que é flagrante violação da lei
internacional, que protegia claramente a barragem. Com o agravante de que ainda
não é possível mensurar totalmente a destruição que o episódio causará, com
efeitos de longo prazo imprevisíveis.
Existe uma terceira hipótese: a de que nunca saberemos o responsável pela destruição. Isso se dá pelo fato de que a destruição pode ter sido causada, ou ao menos possibilitada, pela degradação da barragem, com falta de manutenção adequada devido ao conflito. Inclusive, antes da destruição da barragem, sob controle russo, o reservatório estava no nível mais alto de água de sua história. Resta torcer para que o maior crime de guerra até o momento nesse conflito não fique impune.
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