O divisivo ex-premiê da Itália Silvio Berlusconi morreu aos 86 anos de idade, pouco depois do anúncio de que ele tratava uma leucemia. “Divisivo”, nesse caso, é um eufemismo, como muitos outros também aplicados a ele, como “populista” ou “controverso”. Seus nove anos como chefe de governo italiano, separados em três passagens, fazem dele a terceira pessoa com mais tempo no cargo após a Segunda Guerra Mundial. Seu governo também foi marcado por profundas mudanças na política externa italiana.
Os eufemismos costumam ser utilizados pois algumas pessoas têm certo temor, ou pudor, de utilizar os termos mais apropriados. Berlusconi é talvez a figura mais importante da política italiana dos últimos 30, talvez 40 anos? Sim. Ele chegou ao poder eleito em eleições democráticas? Também. Possui uma legião de admiradores, recebendo centenas de milhares de votos mesmo após uma série de episódios comprometedores de sua reputação? Sem dúvidas.
Nada disso, entretanto, apaga outros fatos. Berlusconi era um dos homens mais ricos da Itália, com uma fortuna de cerca de 6 bilhões de euros, mais participações em diversas empresas. E a formação desse império de mídia e financeiro nunca foi totalmente esclarecida, com diversas ligações suspeitas entre Berlusconi e figuras da máfia italiana e outras atividades escusas. Isso, inclusive, está diretamente ligado à carreira política de Berlusconi, que começa no início dos anos 1990.
Ascensão
Os principais aliados políticos de Berlusconi vinham de sua participação na loja maçônica Propaganda Due, na qual foi aceito no final da década de 1970. No período, e nos anos 1980, a P2 era considerada um “Estado paralelo” na Itália. Seus integrantes eram da elite, seja econômica, política, militar ou eclesiástica, e suas bandeiras eram o anticomunismo e a reabilitação de ideias fascistas, liderados por Licio Gelli. A P2 está ligada ao escândalo do banco Ambrosiano, episódio que inspirou o filme “O Poderoso Chefão 3”.
A P2 também teve braços na América Latina e estava diretamente ligada à ditadura militar argentina de 1976. Suas ligações na P2 permitiram que Berlusconi comprasse o clube de futebol AC Milan, em 1987, tornando-o uma figura conhecida nacionalmente, de carona no sucesso esportivo do clube, que controlou até 2017. É desse seio escuso e suspeito da P2 que sai o Berlusconi político, na esteira da operação Mãos Limpas. Sob a bandeira do combate à corrupção, é aberto um vácuo de poder na Itália.
Esse vácuo explica o fato de que, ao se tornar primeiro-ministro, em 1994, Berlusconi foi a primeira pessoa no cargo que nunca havia ocupado um cargo no Executivo antes, sob o discurso de ser uma figura nova, contra o “establishment”. Na política, o patrimônio econômico de Berlusconi cresceu em enormes proporções. Ele, inclusive, manteve a propriedade de seu império midiático mesmo no poder. No início dos anos 2000, cerca de 90% de toda a mídia italiana estava em suas mãos.
Crimes
Também reconduziu a retórica e a ideologia apologética do fascismo para a política mainstream italiana. Todo e qualquer opositor de Berlusconi rapidamente recebia o rótulo de “comunista”. O personalismo e a construção da imagem de “líder forte” foram o tom dos anos de Berlusconi no poder. Junto com todo esse histórico no mínimo dúbio, estavam também os problemas jurídicos e escândalos, incluindo o fato de que o católico Berlusconi foi condenado criminalmente em casos de prostituição.
Ele foi citado nominalmente, em 2011, em um relatório sobre tráfico de pessoas do Departamento de Estado dos EUA como pessoa envolvida na exploração sexual de menores de idade de origem marroquina. Dois anos depois, em 2013, ele foi condenado a sete anos de prisão por abuso de poder e por ter contratado prostitutas menores de idade, o processo “Rubygate” ou “Bunga bunga”, que se tornaram infames na época. No mesmo ano, ele foi condenado por fraude fiscal.
Mais de uma vez, Berlusconi foi gravado conversando com mafiosos ou em trocas de favores com lideranças políticas. O “controverso” em Berlusconi é muitas vezes usado em referência aos seus comentários sobre mulheres na política ou homossexuais, mas significa, na verdade, uma pessoa envolvida em escândalos de corrupção, condenado criminalmente por fraude fiscal e por ter contratado prostitutas menores de idade e cuja origem da fortuna e da carreira política é obscura.
Política externa
Tais informações estarão mais ou
menos presentes nos vários obituários sobre Berlusconi publicados pelo mundo.
Algo que talvez nosso leitor não veja tão comentado é o fato de que a política
externa de Berlusconi foi diferente em relação ao histórico italiano, abrindo
caminho para algumas bandeiras que hoje são comuns, na Itália e em outros
países europeus. No livro Berlusconi, The
Diplomat (Berlusconi, O Diplomata), os autores Emidio Diodato e Federico
Niglia trazem a dimensão do “populismo” para a política externa.
Em suma, Berlusconi deu uma guinada na política externa italiana, pois era isso que o público desejava dele em todas as esferas possíveis, uma “guinada”. Não foi uma guinada motivada por cálculos políticos ou ganhos econômicos, mas pela expectativa pública e eleitoral. A ideia de que “se nossos opositores faziam X, vamos fazer Y”, independentemente dos méritos, ou falta de, de Y. Isso pode ser verificado especialmente em três esferas de atuação da Itália de Berlusconi.
A primeira diz respeito à OTAN. Até Berlusconi, a Itália era a principal parceira da França em um “ceticismo leve” da OTAN, desejando o aprofundamento da cooperação de defesa europeia para a progressiva diminuição da dependência em relação aos EUA. Essa bandeira histórica italiana se dá por dinâmicas internas do país, tanto políticas, com a força dos partidos de esquerda, quanto econômicas, com as grandes empresas de material bélico tendo considerável poder de influência na política externa.
Hoje, a maioria dessas empresas
está amalgamada na gigante Leonardo, a oitava maior empresa de defesa do mundo.
A indústria bélica italiana é importantíssima, embora pouco conhecida fora dos
meios especializados. A lógica era a de que uma política de defesa europeia
aprofundada permitiria maiores oportunidades econômicas para essas empresas.
Berlusconi rompe com essa postura e adota quase um alinhamento com os EUA em
seus governos, principalmente no início do século XXI.
O governo Berlusconi, inclusive, apoiou a invasão do Iraque em 2003 e enviou tropas para a ocupação do país. O contingente italiano, de cerca de 3 mil militares, ficou no Oriente Médio apenas até o próximo governo, que “restaurou” a postura anterior, de menor alinhamento com os EUA. A segunda esfera distinta de atuação de Berlusconi está nas relações com Israel. Até a década de 1990, a Itália buscava uma equidistância entre Israel e os países árabes, especialmente por causa do petróleo.
“Homens fortes”
A Itália, inclusive, foi um dos primeiros
países da Europa ocidental a receber uma delegação da então Organização de
Libertação da Palestina, na década de 1970. Berlusconi distanciou-se de
diversos países árabes e intensificou as relações com Israel, incluindo
cooperação na esfera militar. Ele e Netanyahu, outro “homem forte”,
estabeleceram boas relações também na esfera pessoal. Berlusconi chegou ao
ponto de dizer que desejava Israel como parte da União Europeia.
Finalmente, a terceira esfera de
Berlusconi está na Turquia. Para compensar o afastamento dos países árabes e
intensificar a atuação italiana no Mediterrâneo, Berlusconi fortaleceu as
relações com a Turquia, tornando-se o principal aliado de Ancara no contínuo
pleito de entrada turca na União Europeia. Também estabeleceu boas relações com
outro “homem forte”, Recep Erdogan. Berlusconi foi testemunha de casamento de
Bilal Erdogan, filho mais novo de Erdogan.
Outra característica da política
externa de Berlusconi foi a proximidade com a Rússia de Vladimir Putin.
Berlusconi, inclusive, declarou apoio recente aos russos no contexto da invasão
da Ucrânia. Nesse caso, entretanto, não foi por populismo, mas pela ideologia
do cifrão. Muitos cifrões envolvendo contratos de petróleo e de gás e empresas
do conglomerado de Berlusconi. Todas essas esferas de atuação citadas se
tornaram, de alguma forma, presentes no debate político italiano.
Outra questão era o discurso de Berlusconi contra a imigração, outro elemento de seu legado político na Itália. Se hoje partidos como o Lega Nord ou o Fratelli d’Italia chegaram ao poder carregando as bandeiras que carregam, é por Berlusconi ter aberto o caminho para eles e reabilitado tais bandeiras. Ao ponto de, mesmo com todo o histórico citado, ele ter sido eleito para o Senado no ano passado, quando não era segredo quem ele era e que atos cometeu. É o fim de uma era na Itália, onde quer que ele esteja.
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