Na manhã da segunda-feira (26 de junho) seguinte ao final da dita “Marcha pela Justiça” conduzida pelo Grupo Wagner, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que o Ocidente não estava envolvido de forma alguma no motim.
“Deixamos claro que não estávamos envolvidos. Não tivemos
nada a ver com isso. Isso foi parte de uma luta dentro do sistema russo”, disse
o presidente em uma coletiva na Casa Branca. Contudo, desde então, muitas vozes
nas redes sociais passaram a interpretar a sucessão dos eventos de outro modo,
alimentando inúmeras teorias da conspiração com os mais distintos personagens.
Houve quem enxergasse a teoria aparentemente improvável de
que o motim foi organizado pela CIA e realizado como uma espécie de distração
para desviar a atenção das últimas denúncias envolvendo o presidente americano
e seu filho, Hunter Biden.
Embora a extensão dos tentáculos de tal trama internacional
possa parecer um tanto quanto exagerada, envolvendo atores e interesses na
aparência diametralmente opostos, as verdadeiras intenções da rebelião do Wagner
contra a liderança militar da Rússia ainda deixam perplexos os analistas.
Apoios inesperados
No momento em que o líder dos mercenários, Yevgeny Prigozhin,
manifestava sua revolta contra determinados setores do poder político-militar russo,
nominalmente o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e Valery Gerasimov, chefe do
Estado-Maior, suas falas foram postadas e espalhadas por grupos dos mais
diversos matizes do nacionalismo russo, insatisfeitos com a condução das
hostilidades contra a Ucrânia.
Porém, as palavras de Prigozhin não abalaram somente o status quo do Estado-Maior e sim toda
a justificativa para a guerra na Ucrânia, fazendo com que muitos comentaristas
anti-Putin revelassem distintos graus de empolgação com suas palavras. Mikhail
Khodorkovsky, o ex-oligarca da indústria petrolífera russa, agora exilado na
Grã-Bretanha, rapidamente emergiu como um dos mais improváveis apoiadores do
levante.
“Prigozhin repetiu palavra por palavra o que nós, a oposição, temos dito desde o início da guerra: seu objetivo é a barbárie e a razão oficial da guerra… é uma bobagem na qual ninguém acredita”, escreveu ele para as mais de 230 mil pessoas que o seguem em seu canal no Telegram.
Simultaneamente a tal posicionamento, até mesmo os comandantes dos batalhões voluntários russos que lutam ao lado da Ucrânia, como o Liberdade para a Rússia (LSR) e o Corpo de Voluntários Russos (RDK), demonstraram interesse no que acontecia em sua pátria-mãe, conclamando às forças não-alinhadas a Putin e às partes pró-guerra que ficassem atentas a possíveis desdobramentos.
Denis Kapustin, líder do RDK, inclusive postou uma mensagem na
qual disse que, apesar de estarem em lados diametralmente opostos do conflito,
acreditava que, à sua própria forma, Prigozhin era uma espécie de patriota.
“Acho que, embora estejamos em lados opostos das barricadas e tenhamos pontos de vista diferentes sobre o futuro da Federação Russa, posso chamá-lo de patriota da Rússia, sem sarcasmo ou ironia”, disse Kapustin.
Possíveis hipóteses
do que aconteceu
Uma rebelião que foi capaz de unir grupos adversários, que
algumas horas antes matavam uns aos outros no front, é um terreno fértil para
teorias da conspiração. Somando-se a isso, a própria sequência de eventos
sugere que a insurreição foi planejada com antecedência, pois sua escala e
operação requereria várias semanas de preparação.
O próprio Prigozhin justificou a rapidez das manobras de
suas formações com o argumento de que elas já haviam planejado ir a Rostov para
entregar seus equipamentos. Contudo, isto não explica o progresso rápido, coordenado
e quase desimpedido das tropas do Wagner por diferentes rotas em direção a
Moscou.
Segundo o jornalista pró-russo Maxim Shevchenko, antigo desafeto de Prigozhin, o motim foi apenas um espetáculo encomendado pelo Kremlin com a intenção de servir a um propósito oculto, embora não se saiba qual. O jornalista argumentou que, dado o quanto Prigozhin “deve ao presidente”, ele não poderia ter lançado tal operação sem seu conhecimento e consentimento prévios.
Deste modo, Shevchenko leu a insurreição como uma tentativa de “desvelar algum outro motim ou conspiração real que teria sido muito mais difícil para o governo administrar”. Já a editora-chefe da Russia Today (RT), Margarita Simonyan, sugeriu que o motim pode ter sido uma tentativa deliberada de enganar o alto comando do exército ucraniano em suas operações de contra-ataque.
Fato é que o motim deixou os analistas políticos e
propagandistas dentro da Rússia absolutamente desnorteados, em busca de alguma
explicação para o aparentemente inexplicável, uma vez que Putin nunca antes
havia precisado de dramatização alguma para suas ações, ou sequer conduzir uma
operação false flag,
clandestina, para obter algum ganho político.
O duradouro silêncio da mídia russa antes que surgisse
alguma narrativa oficial mostra que foi pega de surpresa juntamente com o
Estado-Maior, o que não ocorreria se o golpe fosse realmente uma farsa.
A conspiração como
contenção de danos
Logo após o final do motim, a mesma editora da RT sugeriu que tudo pode ter sido uma manobra da CIA para interferir na política russa. O próprio Putin sugeriu esta possibilidade em seu discurso de 26 de junho, quando disse que os fatos teriam sido articulados pelos “neonazistas em Kiev e seus patrões ocidentais”.
Respectivamente, o ministro das Relações Exteriores, Sergei
Lavrov, e o chefe da Guarda Nacional russa, Viktor Zolotov, acusaram o Ocidente
de instigar a revolta, e o chanceler prometeu uma investigação sobre o papel
dos serviços de inteligência ocidentais na tentativa de golpe.
De acordo com Christopher Paul e Miriam Matthews, autores de um estudo sobre a propaganda russa, neste contexto, a sucessão de teorias conspiratórias contraditórias ajudou a formar na população russa uma cosmovisão sobre os acontecimentos que, no final, tornou-se favorável aos interesses do Estado.
Para eles, o método tradicional do bombardeamento de informações
não confirmadas – buscando a dianteira em qualquer acontecimento, ter a
primeira voz em relação a ele – é um aliado da contradição no quesito de guerra
propagandística, pois as versões descartáveis,
sucessivas e contraditórias tornam a população letárgica e mais maleável a uma explanação
posterior, massiva e final dos órgãos oficiais de comunicação.
“Se uma falsidade ou deturpação for exposta ou não for bem
recebida, os propagandistas irão descartá-la e passar para uma nova (embora não
necessariamente mais plausível) explicação. A falta de compromisso com a
consistência também é aparente nas declarações do presidente russo”, disseram
os autores em seu estudo.
Deste modo, o ciclo noticioso sobre as consequências do
motim do Grupo Wagner, que ainda se desdobra, poderia ser classificado por seus
frutos na comunicação oficial russa como uma espécie de “duplo-pensar” orwelliano, em sua versão 3D e
pós-moderna.
As versões contraditórias, os apoiadores inesperados e os
desfechos impensáveis tornam a realidade algo tão confuso que a população russa
simplesmente desiste de entender o que a cerca e, assim, torna-se silenciosa,
mansa e apolítica.
A síntese desta cosmovisão – sem cosmo e sem visão – transborda-se por meio de reportagens, matérias, piadas e memes na esfera de língua russa da internet, onde a expressão “eu não me interesso por política” (“Я не интересуюсь политикой”) é mais do que uma frase solta sobre algum tema político aleatório: é um atestado sobre o estado mental da sociedade russa como um todo.
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