Luiz Inácio Lula da Silva (PT) será o primeiro presidente a discursar na cúpula da Assembleia-Geral da ONU, nesta terça-feira (19), que deve ser marcada por uma disputa entre as grandes potências pelo apoio político dos países em desenvolvimento. Lula parte de uma posição de coadjuvante na corrida pela liderança do chamado Sul Global (em relação ao líder chinês, Xi Jinping, e ao presidente da Índia, Narendra Modi), mas terá uma rara chance de expor suas pautas.
Isso porque as potências do Ocidente devem estar mais dispostas a ouvir as reivindicações dos países em desenvolvimento em um cenário de polarização global acelerado pela invasão russa à Ucrânia. A embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Linda Thomas-Greenfield, minimizou essa competição global, mas disse que a cúpula será uma oportunidade para os países pobres “exporem suas prioridades”.
Os Estados Unidos e seus aliados rivalizam com China e Rússia no esforço para obter apoio de países da África, da América Latina e da Ásia. Por isso, a Assembleia-Geral da ONU pode ser um palco propício para que Lula apresente sua pauta de combate à pobreza, redução de desigualdades, ampliação dos membros do Conselho de Segurança da ONU e transferência de recursos financeiros de países ricos para nações pobres combaterem as mudanças climáticas.
O Brasil tem uma oportunidade rara de abrir as discussões sobre esses temas na condição de próximo presidente do G20 (grupo que reúne potências industriais e economias em desenvolvimento) e membro dos Brics, o bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Mas tais reivindicações podem não ecoar da forma como o brasileiro deseja. Isso porque Lula tem visto seu protagonismo diante dos países em desenvolvimento se esvaecer devido às declarações e posicionamentos políticos contraditórios. Parte disso vem das afirmações que Lula fez sobre a invasão russa à Ucrânia.
Mesmo com a morte de cerca de 200 mil pessoas em 18 meses de conflito, o brasileiro vem relativizando a guerra. Ele chegou a dizer que a Ucrânia seria tão culpada pela invasão quanto a Rússia. Os confrontos tiveram início depois que o líder russo, Vladimir Putin, ordenou que suas tropas invadissem o território ucraniano em fevereiro de 2022.
Há pouco mais de duas semanas, o chefe de Estado brasileiro voltou a se envolver em uma polêmica envolvendo Putin. Durante participação na Cúpula do G20, Lula disse que não prenderia Vladimir Putin caso ele viesse ao Brasil no próximo ano, quando o Brasil sediará a reunião do G20.
Essa determinação, porém, confronta o Tribunal Penal Internacional, do qual o Brasil é signatário. O TPI emitiu uma ordem internacional de prisão contra Putin por entender que ele está diretamente ligado ao rapto e à deportação forçada para território russo de milhares de crianças ucranianas capturadas durante a invasão da Ucrânia. De acordo com a Constituição brasileira, o país tem a obrigação de cumprir a ordem de prisão contra o russo.
Segundo Vitelio Brustolin, doutor em Relações Internacionais e pesquisador da Universidade de Havard, Lula erra ao fazer afirmações tão polêmicas sobre assuntos delicados.
De acordo com ele, as declarações equivocadas de Lula têm custado a visão positiva que o mundo tinha do Brasil antes do petista voltar ao poder. A consequência é que isso reduz o prestígio do país, que não consegue sair da posição de coadjuvante na disputa pela liderança dos países do Sul Global.
Hoje, a disputa pela posição ocorre principalmente entre a China e a Índia. Xi Jinping foi aclamado como líder dos países em desenvolvimento na reunião dos Brics em agosto. Neste mês, na cúpula do G20, foi Modi quem exerceu o protagonismo.
“Narendra Modi ou até mesmo Xi Jinping não fazem declarações como as de Lula. Diria até que eles evitam holofotes para assuntos como esses. Essa estratégia, inclusive, é uma determinação chinesa adotada pelo governo que, em uma série de outras orientações, tem a intenção de projetar o país como uma potência mundial”, explica Brustolin.
Segundo ele, a ausência de um plano estratégico para política externa brasileira deixa o país em desvantagem em relação à Índia e à China. “Se formos entender o porquê de o Brasil não fazer frente a esses países, a razão é que não temos uma grande estratégia. A gente tem uma política de defesa nacional, temos uma estratégia de defesa nacional, mas não temos de política externa”, pontua Brustolin.
A estratégia de Pequim é “comprar” alianças fazendo grandes investimentos em obras de infraestrutura em países em desenvolvimento. Mas sua economia está começando a declinar e os investimentos estão diminuindo.
Já a Índia tem uma população de aproximadamente 1,4 bilhão de pessoas, o que gera um grande potencial de mão de obra e de mercado. Ela sai favorecida por não adotar a posição antiamericana que afasta da China muitos países do Sul Global.
Guerra Fria 2.0 faz China e EUA buscarem aliados na África, Ásia e América Latina
China e Estados Unidos são os protagonistas de um cenário internacional que já vem sendo chamado de Guerra Fria 2.0 por causa da polarização. Ele foi intensificado pela guerra, depois que Pequim declarou sua aliança sem limites com Moscou.
Nesse contexto, Pequim vem tentando aumentar sua influência sobre países do Sul Global. Isso acontece por meio de financiamentos bilionários do programa Nova Rota da Seda, que faz empréstimos para a construção de obras de infraestrutura, como portos e ferrovias, em países pobres.
Além disso, a China é a maior parceira comercial de diversas nações da África e da América do Latina, entre elas o Brasil. Assim, se aproveitando da dependência econômica, tenta aumentar sua influência sobre esses países.
Os Estados Unidos e seus aliados vêm tentando se opor a esse processo oferecendo recursos financeiros, mas em quantidades mais modestas.
Pequim libera recursos para aliados, mas quer adesão à agenda antiamericana
Pequim ainda faz propaganda dizendo que essas parcerias comerciais ou financiamentos ocorrem sem que a China tente influenciar a política de seus parceiros internacionais e acusa o Ocidente de praticar o contrário. Isso porque os Estados Unidos e a União Europeia condicionam o apoio financeiro à adesão a uma agenda de combate às mudanças climáticas e democracia.
Mas, nos bastidores, os chineses vêm, sim, influenciando na política de seus parceiros, especialmente impondo uma agenda antiamericana, que já foi adotada por Lula em diversas de suas declarações.
“Eu sonho que a gente tenha a nossa moeda para que possamos fazer negócio sem que tenhamos que ficar dependendo do dólar. Até porque só tem um país tem a máquina de rodar dólar”, chegou a dizer Lula, por exemplo, em uma fala pregando a adoção de moedas locais ou de uma moeda comum dos Brics para transações comerciais internacionais.
Brasil deveria adotar posição parecida com a da Índia, diz analista
Para Brustolin, seria mais estratégico para o Brasil fazer menos declarações polêmicas e adotar um posicionamento até mais parecido com o da Índia. O país, após sediar a Cúpula do G20, demonstrou que sabe jogar o xadrez geopolítico. Sem reverberar discursos antiamericanos, Narendra Modi mantém o diálogo com o Ocidente e tem se destacado no Sul Global.
“Ao mesmo tempo que Índia participa dos Brics, junto com Rússia e China, país, inclusive, com quem ela tem conflitos territoriais, o governo indiano também participa do Quad (o Diálogo de Segurança Quadrilateral, formado por EUA, Japão, Austrália e Índia)”, afirma.
O especialista ainda relembra que o país tem mantido diálogos com os Estados Unidos para tentar evitar uma possível guerra entre China e Taiwan. “Ou seja, a Índia se movimenta para perto dos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, compra armas e petróleo da Rússia; além de manter o diálogo com a China”, afirma Brustolin.
Falta estratégia de política externa para o Brasil, avalia especialista
Sem um plano concreto para se apoiar e tomar decisões, o Brasil segue linhas de política externa de acordo com quem ocupa a Presidência da República. Nesse sentido, questões individuais podem acabar influenciando em decisões do Estado brasileiro. Tal situação se reflete, por exemplo, na decisão do país em retomar os laços com a Venezuela durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), bem como na de cortar a comunicação com o país do ditador Nicolás Maduro na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
“O Brasil tem parceiros estratégicos, isso é evidente. Mas quando o Brasil dá uma guinada de política externa que se distancia da política de defesa, isso é um sinal de que não existe uma grande estratégia como país. O que não existe mesmo. A gente tem só estratégias de governos e isso é um problema, porque se muda o governo, o Brasil dá uma guinada numa direção oposta. Com o passar do tempo, se isso continuar acontecendo, a tendência é que o país não saia do lugar”, analisa o professor de Direito Internacional.
Em comparação, o especialista explica que a Índia e a China possuem claros planos de ação e com foco no futuro. Em 2017, a Índia fez um documento propondo uma estratégia nacional. À época, o governo indiano ouviu milhares de pessoas, entre integrantes do governo, especialistas, professores e empresários. O intuito era montar uma estratégia com o objetivo de projetar a Índia em 2030.
“A Índia tem clareza sobre o que quer para o futuro. É um país ainda com muitos contrastes, com grandes níveis de pobreza, falta de saneamento. Mas, ao mesmo tempo, a Índia tem um programa espacial, mandou uma missão para a Lua, agora mandou uma sonda para o Sol”, avalia.
Segundo ele, embora ainda tenha muita pobreza, a Índia caminha para se tornar a terceira maior economia do mundo e tem armas nucleares. Isso a coloca numa posição de muito mais poder que o Brasil.
A China tem planos de longo prazo. O país aposta em seu poder financeiro e em forças armadas em expansão para tentar substituir os Estados Unidos na posição de nação hegemônica nas próximas décadas.
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