Em um primeiro olhar, a causa da esquerda ocidental e a causa palestina têm pouco em comum.
Em um segundo olhar, também.
Os líderes palestinos querem um Estado de viés autoritário, com a religião no centro e uma estrutura social rígida. As mulheres têm autonomia limitada. Imigrantes de outras etnias ou religiões não são bem-vindos. O sistema econômico tampouco é o defendido pelos socialistas.
Ainda assim, grupos estudantis, sindicatos, partidos políticos de esquerda têm demonstrado apoio à ideia de que Israel deve ser varrido do mapa. Do PCO ao PT, passando por toda a sorte de acadêmicos e artistas de esquerda, existe um consenso quase universal no apoio à Palestina contra a “ocupação israelense” (leia-se a existência de Israel).
Mas o alinhamento, que hoje parece automático, não foi assim no passado. A história do conflito entre Israel e os países árabes ultrapassa a divisão clássica entre esquerda e direita.
Israel nasce sob comando socialista
O Estado de Israel nasceu em 1948 sob a liderança de figuras socialistas — quase todos, judeus seculares.
O movimento sionista teve início décadas antes do Holocausto. E o idealismo de uma nação para os judeus vinha acompanhado do idealismo quanto ao modo de vida.
A formação dos kibutzim – fazendas comunitárias — é fruto dessa mentalidade. Antes mesmo da Revolução Russa de 1917, a tendência coletivista era comum entre os judeus que haviam se radicado na Europa. Mas, ao contrário do comunismo imposto pelo Estado de cima para baixo, muitas famílias que emigravam para o futuro Estado de Israel optaram por um modelo de compartilhamento voluntário.
David Ben-Gurion, o primeiro chefe de governo de Israel, era um socialista. Antes de chegar ao poder, ele defendeu até mesmo o uso de violência contra trabalhadores de direita que tentavam impedir movimentos grevistas.
O partido criado por Ben-Gurion, o Mapai (cujo símbolo é uma adaptação da foice e do martelo) dominou a política israelense nas duas primeiras décadas de existência do país. Em 1968, o Mapai se fundiu com outra sigla de esquerda e formou o partido trabalhista Ha-Avoda, que se manteve no governo por mais uma década.
Só em 1977, com o primeiro-ministro Menachem Begin, é que a direita (representada pelo partido Likud) chegou ao poder pela primeira vez em Israel. E foi só no século 21 que os conservadores solidificaram sua maioria no Knesset, o parlamento israelense. O terrorismo islâmico da Segunda Intifada (uma onda de atentados contra alvos israelenses) ajudou indiretamente a derrotar a esquerda, que propunha uma postura mais conciliatória com os palestinos.
Outra figura central na criação de Israel, Golda Meir, chegou a ocupar ao mesmo tempo o posto de primeira-ministra israelense e de vice-presidente da Internacional Socialista.
Ao se casar, segundo escreveu em suas memórias, ela não queria uma cerimônia religiosa tradicional porque tanto ela quanto o marido Morris Meyerson eram socialistas. Ela também descreveu como o movimento sionista socialista a atraiu ainda na adolescência. “Eu dava por certo que, nesse lugar, ninguém passaria necessidade, ou seria explorado, ou viveria em medo de outras pessoas”, relembrou.
União Soviética ao lado de Israel
A conexão da esquerda com a origem de Israel vai além das ideias de seus fundadores. A União Soviética foi o primeiro país a reconhecer a independência israelense. Logo depois (além da Nicarágua) vieram outros governos sob influência comunista: Checoslováquia, Iugoslávia e Polônia.
Os soviéticos acreditavam que apoiar a formação do novo Estado seria uma forma de atrair Israel para longe da alçada de influência dos britânicos — na época, a União Soviética considerava que o Reino Unido continuaria sendo a maior potência do planeta. O mundo estava mudando rapidamente, e as alianças geopolíticas passavam por um realinhamento. Em 1948, nem mesmo o papel dos Estados Unidos como principal rival na Guerra Fria era óbvio.
Mas, nos anos seguintes, as políticas antirreligiosas e, mais especificamente, antissemitas do regime soviético impediram uma aproximação maior entre Israel e o bloco comunista. Além disso, apesar de suas tendências socialistas, os líderes israelenses acreditavam na via democrática. O mesmo não pode ser dito dos vizinhos de Israel.
A versão árabe do socialismo
Não é exagero dizer que as guerras iniciais de Israel contra países árabes foram conflitos confrontos entre governos socialistas.
O Oriente Médio e o Norte da África nem sempre foram tão fragmentados quanto hoje. O império otomano controlou a região por cinco séculos até que se desmantelou em 1922, e foi substituído em boa parte do Oriente Médio por protetorados britânicos.
Mas, pouco a pouco, movimentos de independência emergiram. O mais influente foi o do Egito, sob a batuta de Gamal Abdel Nasser. Em 1952, um golpe militar liderado por ele derrubou a monarquia do Egito. O Estado nacional, que ficara em segundo plano durante a maior parte da história da região, passava a ser o protagonista.
A “Carta pela Ação Nacional”, de Nasser, previa a “destruição do imperialismo”, o fim da “dominação do capital sobre o governo”. Gamal Abdel Nasser também era contrário à existência de Israel. “É um Estado artificial que precisa desaparecer”, ele disse, em 1954. O Egito liderou os ataques de países árabes a Israel em 1948, 1967 e 1973.
A influência do “nasserismo”
O nacionalismo árabe se baseava na ideia de que os países da região deveriam se afastar do bloco ocidental. A estratégia era parte de um movimento anticolonialista mais amplo, que também influenciou movimentos pró-independência na África. Nasser foi o principal líder do chamado pan-arabismo, que gerou frutos em muitos países da região. Nos anos seguintes, partidos socialistas conquistaram o poder com figuras como Saddam Hussein no Iraque, Muammar Gadaffi na Líbia e Bashar Al-Assad (que continua no poder) na Síria. Na Palestina, o socialismo árabe está na raiz do Fatah, movimento que foi liderado por Yasser Arafat e ainda hoje governa a Cisjordânia.
Entre 1958 e 1961, Egito e Síria chegaram ao ponto de se unificarem como República Árabe Unida. Até mesmo no Líbano, o único país da região com uma população cristã representativa, as ideias de Nasser tiveram alguma influência.
“O pan-arabismo era um movimento mais de esquerda, secular, de reação ao imperialismo americano”, explica Igor Sabino, doutor em Relações Internacionais e professor do IBMEC. Ele, entretanto, faz uma ressalva importante: “A noção de esquerda e direita no Oriente Médio é muito diferente da ocidental.”
Quando os países árabes se tornaram independentes, a bandeira socialista parecia uma alternativa razoável, em parte por simbolizar um afastamento dos britânicos, em parte por parecer mais compatível com o modo de vida islâmico, pouco influenciado pelas ideias do liberalismo. As ideias socialistas estavam em alta em parte da Europa. Na França, por exemplo, o bloco de esquerda conquistou o poder ainda em 1946.
Os países socialistas árabes não eram alinhados automaticamente com o bloco comunista comandado pela União Soviética. Ao manter uma certa distância dos dois blocos da Guerra Fria, eles buscavam manter o poder de barganha.
Mas, pelo mesmo motivo que reconheceram a existência de Israel, os soviéticos chegaram primeiro e decidiram apoiar a causa nacionalista árabe.
Em 1952, enquanto a região estava sob embargo da ONU para a compra de armas, a Checoslováquia (tutelada pela União Soviética) vendeu 200 tanques de guerra, outros 200 veículos blindados, 100 aviões de caça, 2.000 caminhões e 1.000 jipes ao governo egípcio.
Para os soviéticos, era uma grande oportunidade. O Egito havia deixado a zona de influência britânica (assim como a Jordânia e a atual Palestina), e os russos faziam questão de reforçar a proximidade com esses países.
O governo americano, por sua vez, mantinha inicialmente uma postura de apoio tímido a Israel, para quem se recusou a vender armas até 1962. Mas, conforme os soviéticos buscavam uma aproximação com os árabes, os Estados Unidos passavam a ver Israel como aliado preferencial na região.
Com o enfraquecimento da União Soviética e a subsequente queda do Muro de Berlim, as forças seculares de esquerda se viram mais fragilizadas para impedir o avanço do fundamentalismo islâmico no mundo árabe. A ascensão de grupos como a Al-Qaeda e o Hamas forçou os Estados Unidos a adotarem um papel mais ativo de apoio a Israel — quando não de intervenção militar direta.
A esquerda pós-moderna escolhe um lado
O antissemitismo da esquerda tem raízes no próprio Karl Marx, que associava os judeus ao capitalismo. A ligação histórica do socialismo árabe com os soviéticos também ajuda a explicar por que grupos radicais, como o PCO, apoiam o Hamas.
Mas existe outra razão para a simpatia da esquerda contemporânea pelos palestinos. Ela pode ser resumida por uma palavra: interseccionalidade.
O termo se refere à ideia de que os oprimidos devem se unir, seja qual for a causa da opressão. Daí surgem as alianças que unem ativistas transgênero, militantes pró-aborto, feministas e comunistas em favor de um regime de contornos teocráticos.
A chave para entender o apoio da esquerda moderna à Palestina, portanto, não é a defesa de um governo igualitário. Se este fosse o caso, seria mais razoável apoiar Israel, que ainda tem kibutzim em funcionamento, garante direitos iguais às mulheres e possui normas que protegem as minorias sexuais, tão caras aos progressistas. A chave é a visão de que os israelenses são colonizadores.
Para quem acredita que a história tem dois lados, a Palestina foi eleita como “o lado certo”. Israel, nessa visão, é uma força “colonialista”. Esta interpretação ganhou força no século 21, quando a reação dura do governo israelense ao terrorismo palestino solidificou os dois lados do debate.
Igor Sabino diz que, para entender o apoio à Palestina no Ocidente, é preciso entender a nova esquerda. “Isso tem a ver com a teoria crítica, o pós-colonialismo e o pós-estruturalismo. Essas teorias ocidentais é que fazem esses grupos de esquerda associarem o movimento palestino à luta anticolonial. Esse apoio tem muito mais a ver com o que o Roger Scruton chamava de nova esquerda do que com o marxismo e o socialismo em si”, diz ele.
Se os grupos de esquerda se identificam com os militantes palestinos, a recíproca nem sempre é verdadeira. Não se tem notícia de manifestações de palestinos a favor do casamento gay ou do aborto.
A ideia de interseccionalidade ainda não chegou a Gaza.
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