Por que será que houve uma química tão grande entre Flamengo e Jorge Jesus, contra muitas expectativas, e por que será que há uma espécie de rejeição dos rubro-negros com o Tite, contrariando também diversos prognósticos?
Será pelo estilo de jogo, pela forma de se comunicar, pelo uso da ciência, pelo tipo de roupa, pelas prioridades, pelo jeito de ser, por clubismo, por bairrismo ou por um pouco disso tudo?
Creio que é hora de ter uma reflexão mais séria sobre isso, afinal o técnico que dirigiu a seleção brasileira nas duas últimas Copas do Mundo e que é considerado por tanta gente como o melhor de sua geração no país foi vaiado e ofendido pela Nação no Maracanã após a sofrível vitória do Flamengo por 1 a 0 diante do Amazonas, pela Copa do Brasil.
Mesmo quando a equipe carioca nadava de braçada no Campeonato Carioca, sendo campeã levando apenas um gol (do Nova Iguaçu, quando usou time reserva), nunca houve um encantamento com o trabalho de Tite, que começou ainda em 2023, lembrando que ele mudou os planos de não assumir nenhuma equipe brasileira no ano passado para preparar melhor o melhor elenco da América do Sul para 2024.
Tite tem sido científico desde sua chegada ao clube mais popular do Brasil.
Primeiro, chegou bem antes do previsto por ele mesmo para conhecer o elenco estelar do time. Colocou como meta “apenas” ficar no G4 quando era bem possível pare ele e seu grupo ganhar o Brasileiro de 2023 diante da derrocada do Botafogo (o Palmeiras mostrou que era bem possível mesmo no final das contas).
Depois, teve todo o tempo e o dinheiro para requintar seu elenco, trazendo nomes como De La Cruz, Viña e Léo Ortiz. Teve uma pré-temporada modelo nos Estados Unidos, como se treinasse um clube grande da Europa. Sem Mundial, Recopa e Supercopa para disputar como em anos anteriores, o calendário se apresentava de início muito confortável. Havia apenas o Carioca nos primeiros meses, e foram usados reservas nos primeiros jogos. Mesmo assim, conseguiu o título estadual invicto e com a melhor defesa da história do Rio, aproveitando também os problemas do Vasco, as oscilações do Botafogo e a queda de produção do Fluminense, o que permitiu ao Nova Iguaçu ser o vice-campeão do Rio de Janeiro.
Tudo apontava para jogadores descansados e bem preparados para os primeiros desafios mais importantes: a CONMEBOL Libertadores, o Brasileiro e a Copa do Brasil. Mas eis que o planejamento, com base na ciência, faz Tite poupar atletas importantes em série, tirando De La Cruz e Pedro de confronto contra o forte concorrente Palmeiras na 3ª rodada do campeonato nacional, tirando força também de jogo de Libertadores e colocando assim em risco a vaga em 1º lugar em seu grupo. Agora, até o confronto com o valoroso Amazonas na Copa do Brasil está em aberto, pois o jogo da volta será na Amazônia, e o bicho rubro-negro não se mostrou tão feroz assim no Rio…
Se antes havia uma certa paciência com Tite pelo pouco tempo de trabalho (já tem até um bom tempo, considerando os padrões brasileiros) e as críticas a ele se davam mais pelo pouco aproveitamento do ídolo Gabigol, agora parece que tudo está errado.
As escolhas do treinador não são muitas vezes felizes, e seu discurso soa sistematicamente como algo pior ainda. Após o jogo insosso contra o Amazonas, Tite falou em “criatividade de reprogramação de movimentos”. Citou o livro de Michael Jordan, comentou também sobre “uma retomada do processo de confiança”.
Para ele, parece que tudo são “processos”. Não é só o torcedor comum que tem alguma dificuldade de entender o que Tite faz e fala. Essa aura de modernidade, essa tentativa de explicar tudo de forma científica, esse tom professoral que às vezes esbarra em discurso que parece de pastor, essa pompa e essa formalidade não se encaixam muito bem com a atmosfera do Flamengo atual, o clube mais endinheirado e ambicioso da América.
Jorge Jesus não virou ídolo da Nação apenas pelos títulos e vitórias impactantes que conquistou, mas também porque falava direto ao coração rubro-negro, seja cobrando seus atletas que pouco descansavam, seja cutucando rivais que se colocavam em sua rota, seja elogiando (com exageros até) a instituição e a torcida que representava.
Tite é educado, polido, correto, mas esse pacote todo de bondade não está em jogo aqui nem nas arquibancadas que protestam contra sua figura. Ele errou ao colocar no início do ano o Campeonato Carioca como o mais forte do Brasil, depois se retratou. Gesto nobre admitir que fez uma leitura equivocada, parcial. Mas ele pediu desculpas ontem até por algo que nem deveria. Ele usou o Gabigol em parte do segundo tempo logo após o atleta conseguir efeito suspensivo, o que teria deixado ele em risco de sofrer alguma lesão. O Maracanã e os mais de 40 milhões de torcedores do time Brasil afora esperavam exatamente que Tite colocasse o ídolo em campo. E, por mais que a ciência diga que ele só poderia atuar por uns 15 minutos, o fato de ele ter atuado por meia hora não é o fim do mundo.
Ele tem que entender mesmo a situação, o clima do jogo, a torcida no Maracanã, a motivação do atleta que quer dar a volta por cima, a atuação fraca de seu time na primeira hora de partida, etc. Nem tudo no futebol deve ser resolvido com planilhas, com análise de desempenho, com estatísticas, com ciência.
Tite usou até o Guardiola outro dia para justificar suas escolhas. Mas Guardiola é um treinador que tenta vencer todos os títulos possíveis, tanto que foi até tetracampeão da Copa da Liga da Inglaterra, uma espécie de Estadual no puxado calendário inglês. O técnico do time mais rico e poderoso do nosso continente avisou algumas semanas atrás que “não dá para ganhar tudo”, já uma desculpa para algum insucesso nesta temporada. Não é algo que o otimista e ambicioso rubro-negro quer ouvir, seja ele um simples torcedor, seja ele um dirigente que investe alto na equipe.
Estamos apenas começando o mês de maio. Se é muito cedo para demitir Tite, também é muito cedo para ficar obcecado em poupar atletas de jogos importantes. São praticamente três meses apenas de atividade do elenco principal, ninguém deveria estar sofrendo tanto assim.
Pela estrutura que o Flamengo oferece e pelos caros profissionais que têm em várias áreas, essa “maratona” que todos os clubes daqui enfrentam deveria ser encarada de forma bem melhor pelo bilionário clube da Gávea.
Não é só o time de Tite que joga na altitude, em grama sintética, às 11h, etc. As dificuldades são para todos, e ela pesa ainda mais para quem tem menos dinheiro e condição.
O desempenho em campo também tinha que ser de nível bem mais elevado. Não dá mesmo para admitir este Flamengo tão superior jogar de maneira tão burocrática, com uma série de passes para o lado e para trás, em ritmo baixo, produzindo um jogo tão chato que irritaria qualquer torcida.
Tite está comandando um Flamengo que deveria ser pulsante de forma pragmática, científica mesmo. E já estamos cansados de saber que “não é só futebol”, tem muito mais coisa em jogo.
Assim como a seleção brasileira precisa vencer e convencer, o atual Flamengo exige isso de seu treinador. Dorival Júnior e Rogério Ceni caíram mesmo ganhando títulos importantes no clube carioca. Tite até aqui está mais perto do Dome (Domènec Torrent), estudioso treinador que bebeu na fonte de Guardiola mas que não tocou o coração rubro-negro com seu trabalho posicional.
Tite perdeu duas Copas por abraçar demais alguns jogadores e algumas convicções. Falta ousadia, falta alegria, falta improvisação, falta criatividade, falta arte, sobram “processos”.
Tite patinou em boa parte de sua carreira como treinador e teve alguns momentos muito positivos, especialmente no Corinthians, onde ganhar de forma suada por 1 a 0 não é visto como algo tão ruim como em outros gigantes do futebol brasileiro (onde a exigência da torcida é maior). O bom treinador gaúcho conquistou muita gente com seu discurso empolado e teve gente o comparando em algum momento com Telê ou até Guardiola (tinha faixa antes da Copa de 2018 em jogos da seleção o exaltando assim). Ele está longe de ser ruim ou de ser um profissional limitado, mas está longe também desse Olimpo da bola onde alguns tanto tentam colocá-lo.
Talvez ele vença títulos importantes com o Flamengo e seja mais reverenciado pelos rubro-negros, isso é muito possível ainda devido ao elenco vultoso do clube, mas acho quase impossível ele cativar o coração dos torcedores como Jorge Jesus conseguiu tão bem.
As pessoas são diferentes, os trabalhos são diferentes, as filosofias são diferentes, os discursos são diferentes. Tite está sendo “apenas” ele mesmo no Flamengo. E os rubro-negros desgostosos e contrariados estão sendo apenas eles mesmos em estádios e mídias sociais.
Será que em algum momento poderá haver uma química entre o Tite e o Flamengo ou será que a relação entre eles será como a da água com o óleo?
More Stories
Como lesão atrapalhou Quintero de ser jogador do Cruzeiro em 2015
Palmeiras cresce e ‘empata’ em chance de título com o Botafogo
Atlético x Botafogo termina em confusão; Hulk detona Luiz Henrique: ‘Acha que é craque’