Se você é agricultor na União Europeia, pelo menos 20% do seu tempo é dedicado a manter em dia a papelada, lançamentos contábeis e administrativos que demonstrem que está cumprindo todas as regras, prazos e obrigações estabelecidos pelo pacto Green Deal.
Desde 2019, o Green Deal, ou Acordo Verde Europeu, funciona como bússola de um novo modelo de desenvolvimento, marcado por rígidos controles de indicadores ambientais e cujas premissas têm pautado também as condições de comércio com outros países. Exemplo disso é a taxa de ajuste carbono na fronteira (CBAM, na sigla em inglês), que será aplicada em produtos de outras regiões do mundo que não atendam às metas de redução de emissão de carbono impostas na Europa.
Mas o Green Deal se tornou uma panela de pressão prestes a explodir. Nas últimas semanas, os agricultores europeus se colocaram em pé de guerra contra os altos custos de insumos, combustíveis e energia, num contexto de perda de renda e regras ambientais inflexíveis de Bruxelas.
Dentre os motivos que resultaram em tratores bloqueando as rodovias de acesso às grandes cidades estão regulamentos que mandam reduzir o uso de pesticidas e fertilizantes, que exigem 25% de cultivo de orgânicos e que determinam converter 4% das terras para preservação – no Brasil, em comparação, os produtores têm que manter intactos de 20% a 80% de suas propriedades.
As premissas do Green Deal formam uma espécie de “culturalismo ambientalista” que se tornou hegemônico na Europa nos últimos dez anos, segundo definição de Daniel Vargas, coordenador do Observatório de Bioeconomia da FGV. Esse modelo de desenvolvimento estaria agora em crise e com sinais de que poderá desmoronar.
Ursula von der Leyen convoca “diálogo estratégico”
Pressionada por milhares de agricultores que bloquearam ruas da Alemanha, Grécia, Holanda, Polônia e França, dentre outros países, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, lançou um “diálogo estratégico”.
A ideia é reunir grupos agrícolas e decisores do bloco econômico para entender o que deu errado e o que precisa mudar na agenda verde. O belga Thierry de L’Escaille, presidente da Associação Europeia dos Produtores Rurais (ELO), é um dos líderes convocados para essa negociação.
“O que está acontecendo é uma revolução contra o excesso de regras. Os produtores estão se sentido esmagados por tantos regulamentos e concluíram que é impossível fazer tudo o que Bruxelas exige”, disse L’Escaille em entrevista à Gazeta do Povo.
Para ele, o erro da União Europeia foi não entender que a produção de alimentos é tão urgente quanto as questões climática e ambiental.
Impacto da guerra foi ignorado pelo Green Deal
A implementação do Green Deal nos últimos dois anos coincidiu com a deflagração da guerra da Ucrânia. Mas os efeitos do conflito teriam sido ignorados pela agenda verde. Boa parte dos grãos que a Ucrânia enviava para a Ásia e a África inundou os mercados europeus, livre de tarifas, e achatou os preços pagos aos produtores. Ao mesmo tempo, houve disparada na planilha de custos de fertilizantes, insumos, diesel e energia.
“Eles negaram que havia uma crise. Disseram que não levariam em consideração o contexto da guerra. Pensaram que não havia tempo para esperar pela crise climática, que era muito dramática, assim como a crise de biodiversidade. Esqueceram que a produção de alimentos é fundamental, que o produtor precisa trabalhar, administrar essas exigências e sobreviver na atividade”, sublinha L’Escaille.
Os agricultores europeus ficaram furiosos com a obrigação de não deixarem de plantar culturas de cobertura (para proteger o solo) entre um cultivo e outro, sob qualquer hipótese. “No ano passado foi impossível, não conseguíamos acessar as propriedades por várias semanas, estava muito úmido e tinha neve. Mas se você não tivesse conseguido tirar as batatas do solo, se não tivesse feito cultivo de cobertura verde, eles tinham o direito de te multar, de penalizá-lo por isso. É como a pessoa que compra ingresso para esquiar. Ora, se não tem neve, ela não pode ser responsabilizada”, destaca o produtor.
Ao redor das áreas de proteção ambiental europeias, as exigências estariam a ponto de inviabilizar a atividade agrícola. “Se você está próximo de uma dessas zonas especiais de conservação, o banco não pode te dar empréstimo. O banco é multado se emprestar. Se você é produtor e está localizado na área errada, tem que sair do negócio. Em alguns países diziam que poderíamos produzir nessas áreas até nos aposentarmos, mas agora alguns já estão dizendo que essas áreas são muito sensíveis e que teremos de encerrar as operações em dois ou três anos. Isso também está deixando os produtores furiosos”, relata Thierry.
Culturalismo ambientalista quer ditar regras em detalhes
Na avaliação
de Daniel Vargas, da FGV, os gestores das políticas econômicas e agrícolas da
União Europeia estão numa encruzilhada, em que o próprio modelo de desenvolvimento
adotado, o “culturalismo ambientalista”, sofre um xeque-mate e pode ruir. Mas o
que é esse culturalismo ambientalista?
A diferença desse modelo de desenvolvimento em relação à social-democracia, que o antecedeu, estaria na visão de que “não basta regular o mercado à distância ou redistribuir por meio de uma tributação marginal para resolver os problemas da sociedade”. “É preciso penetrar o coração do mercado e modificar seu DNA por dentro”, diz Vargas.
Isso inclui modificar as relações econômicas para torná-las mais inclusivas, abrigando minorias e bandeiras identitárias, e também colocar o valor ambiental acima de tudo.
Nesse modelo, o Estado exerce cada vez maior controle dos espaços econômicos, determinando em detalhes como a pessoa contrata, como investe, como vende, como paga imposto, tudo sob a justificativa da urgência da sustentabilidade. Nos últimos dez anos, essas ideias chegaram ao poder e viraram leis, orçamentos e políticas públicas.
Assim, a atividade agrícola passou a ser vista como antagônica ao meio ambiente, uma leitura negativa que dominou os círculos intelectuais influentes.
“Ao longo das últimas décadas foi-se construindo na Europa uma visão demonizadora do produtor rural. O fazendeiro não é mais aquele que provê a vida, o alimento que estrutura a base da sociedade para ter a energia da comida para investir em outros projetos mais sofisticados. Ele passa a ser visto como câncer social. Toda vez que toca o chão, está comprometendo o equilíbrio do planeta. Toda vez que age, está ameaçando valores universais de que os europeus se veem como portadores”, sublinha Vargas.
Protestos na Europa terão efeito colateral no Brasil
Esse modelo teria avançado sem muitos obstáculos enquanto as discussões se limitaram aos gabinetes, às estruturas burocráticas e círculos intelectuais. Na medida em que chegou ao campo, criou uma tensão que agora explode na forma de tratores fechando rodovias e cercando as cidades.
“Estamos assistindo a um teste de fogo, que coloca à prova, diante do cidadão comum, a autoridade desse projeto de culturalismo ambiental. O que as ruas nos revelam é que, no mínimo, esse projeto passa por uma hemorragia profunda”, enfatiza Vargas.
Para a diretora de Relações Internacionais da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Sueme Mori, houve um desequilíbrio no tripé do antigo conceito de responsabilidade social – com o aspecto ambiental se tornando standard máximo, em detrimento das implicações sociais e econômicas.
“Essa legislação europeia é absolutamente punitiva. Não tem nenhum instrumento que prevê cooperação ou premiação por boas práticas, é só punitiva. Se não fizer é multa, se não fizer o ônus da prova é seu. O mercado tem sua lógica de operar. O excesso de regulação gera um protecionismo e um prejuízo interno, com aumento dos preços dos alimentos, e essa pressão toda sobre os agricultores, por uma questão de renda”, diz.
A guerra da Ucrânia abalou as trocas comerciais na Europa e tornou a questão ainda mais complexa. “Mas a questão ambiental tem um peso muito grande, de fato”, afirma Mori.
Acordo com o Mercosul entra em banho-maria
Como essas tensões na Europa podem afetar o Brasil? Um efeito colateral direto, já encampado pelo presidente francês Emmanuel Macron, é jogar água fria nas pretensões de fechar o acordo comercial com o Mercosul.
Para Thierry de L’Escaille, é o excesso de regulações, e não a perspectiva do acordo, que mais irrita os agricultores europeus. Mas ele admite que as atuais circunstâncias podem frear avanços: “É um momento difícil, uma questão emocional e psicológica. Nesse contexto, é muito fácil para os governos dizer que vão proteger os produtores e que são contra o Mercosul”.
Os pecuaristas franceses e irlandeses, em particular, estariam “apavorados”, segundo Thierry, com a perspectiva de abrir as importações de carne do Mercosul.
“Eles temem que serão esmagados, que serão expulsos do mercado. Não acredito que isso seja verdade, mas entendo que suas associações de pecuaristas deveriam realmente discutir e negociar com seus colegas, explicando as coisas e tentando encontrar uma solução. Se não, essa história vai durar outros vinte anos. É nonsense o que vemos, mas são os argumentos que se opõem ao Mercosul, vocês precisam enfrentar e discutir isso”, aconselha.
“Agressividade dos verdes” dificulta acordo com o Mercosul
Outro ponto sensível está no discurso de proteger a produção de alimentos da concorrência da agricultura voltada à produção de energia. “Esta questão dos biocombustíveis também está cercada por um tanto de nonsense. Ela é utilizada como um argumento contra o Mercosul, que vem da agressividade dos verdes”, destaca.
No meio do ano haverá eleições para o Parlamento Europeu. Um relatório do Conselho Europeu de Relações Exteriores aponta para uma forte guinada à direita, podendo, pela primeira vez, se constituir uma maioria de democratas cristãos, conservadores e eurodeputados de direita.
“Esta ‘virada acentuada à direita’ terá provavelmente consequências significativas para as políticas do bloco, afetando decisões nas relações exteriores, em particular nos temas ambientais, em que uma nova maioria poderá se opor às atuais metas climáticas europeias ambiciosas”, diz o documento.
Tudo converge para eleições do Parlamento Europeu, em junho
Os temas dos acordos comerciais, de renda, de subsídios e protecionismo interno vão pautar os debates nos próximos meses na Europa.
“É uma campanha eleitoral. O momento desses protestos dos agricultores está muito relacionado às eleições de junho. Nessa movimentação política, as demandas dos setores passam a ter um peso maior”, argumenta Sueme Mori, da CNA.
Ela defende que o setor agropecuário brasileiro, o governo e quem faz as políticas públicas para o campo permaneçam atentos. “Temos que entender esses movimentos para ver o que deve ser replicado e aquilo de que devemos nos afastar. Queremos um ambiente em que a produção agropecuária seja viável”, pondera.
Para o Brasil, haveria dois caminhos adiante. Vargas, da FGV, alerta para o risco de “os derrotados de lá [Europa] se abrigarem aqui”.
“Na história dos movimentos políticos e das ideias, muitas vezes acontece desse modo. Você perde a hegemonia na sua terra e vai buscar um abrigo ou uma cidadania em outro território. Se formos por aí, o Brasil passa a ser uma última esperança dos derrotados europeus”, diz.
“No mundo em desenvolvimento, a força de instituições e ideias que muitas vezes nascem nos países desenvolvidos é muito mais impactante do que lá. É só contrastar a força de algumas ONGs criadas nesses países desenvolvidos e comparar os recursos investidos, a influência política e o papel que desempenham nos países em desenvolvimento”, assinala.
Mercado não pode ser “reino da desconfiança”
O outro caminho seria o Brasil criar um projeto tropical de desenvolvimento, que reconheça e valorize atributos ambientais próprios e únicos. E evitar aderir a uma visão do mercado como um “reino da desconfiança, em que todos os produtores são criminosos em potencial, até que provem o contrário”, sublinha Vargas.
Exemplo doméstico da dificuldade de superar essa visão da “desconfiança como regra” está na demora em regulamentar a Lei do Autocontrole, aprovada em 2022, no fim do governo de Jair Bolsonaro (PL). A lei prevê que as agroindústrias controlem e monitorem a qualidade de seus produtos de origem animal e vegetal, sem depender da presença de um fiscal do governo em cada linha de produção.
O poder de polícia do Estado é mantido, voltado à verificação das conformidades dos processos, registros e controles, com apoio de laboratórios, algoritmos e até Inteligência Artificial. A lei, porém, até agora não foi regulamentada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
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