Em um país onde o futebol é mais do que apenas um esporte, os estádios são templos de paixão desenfreada e as cores do time tornam-se bandeiras de identidade, as torcidas organizadas argentinas, os “barra bravas”, emergem como figuras onipresentes no cenário do futebol, mas também como entidades poderosas com tentáculos que se estendem desde a política ao crime organizado.
Estes fanáticos do futebol não se limitam às arquibancadas. Por trás das suas canções, faixas e tambores existe uma série de atividades delitivas que envolvem homicídio, tráfico de drogas, furtos e lavagem de dinheiro.
Os barra bravas possuem uma estrutura hierárquica onde os líderes exercem controle absoluto sobre os seus seguidores e são os responsáveis pelos acordos com os políticos que buscam influenciar as campanhas eleitorais, intimidar os adversários e garantir votos nas urnas em troca de favores, impunidade e acesso a recursos estatais.
A origem
O fenômeno dos barra bravas surgiu nas periferias de Buenos Aires, durante a década de 1950. Esse período coincidiu com a popularização do futebol entre as classes trabalhadoras argentinas junto à revolução social promovida pelo ex-presidente Juan Domingo Perón.
Os “barras” (nome dado pela imprensa para se referir a grupos de pessoas que frequentemente se reúnem sob um interesse comum) já existiam desde 1920 compostos por torcedores que se destacavam entre o público por sua forte paixão e fanatismo mas que ainda não possuíam muita organização, pessoas ou financiamento.
Porém tudo mudou em 1958, após a morte de Alberto Mario Liniker, torcedor do Boca Juniors que perdeu a vida em um jogo de futebol que não envolvia seu time. Este incidente marcou uma virada na sociedade argentina, que tomou consciência do poder e da violência latente nas torcidas organizadas.
Com o passar dos anos, o amor incondicional pela equipe se transformou em pura violência. Segundo o livro ‘Morte em Campo’ de Amílcar Romero, entre 1958 e 1985, aproximadamente 100 pessoas perderam a vida em confrontos relacionados ao futebol. Os pequenos grupos de fanáticos tornaram-se cada vez mais institucionalizados e se converteram em organizações tão poderosas quanto os próprios clubes que apoiavam.
Na década de 1980, o fenômeno das barra bravas se expandiu para países como Chile, Paraguai, Equador e Peru, e desde então ganhou notoriedade em toda a região.
Roubos e drogas: o outro lado dos barra bravas
No início deste mês, um torcedor do Chacarita Juniors foi esfaqueado no meio da arquibancada e morreu minutos depois no hospital, após se envolver em uma briga interna dos barra bravas de San Martín, ocorrida no primeiro tempo da partida contra o Deportivo Maipú de Mendoza pelo torneio da Primeira Nacional (que é segunda divisão do futebol argentino). Episódios como estes são cada vez mais frequentes e apesar dos esforços das autoridades em detê-los, não houve recuo.
Em 10 de junho de 2013, a Associação Argentina de Futebol (AFA) proibiu a presença de torcedores rivais nos jogos após a morte de Javier Jerez, torcedor do Lanús, devido a um confronto com a Polícia na entrada do Estádio Único de La Plata. A decisão, em um princípio temporária, acabou sendo mantida devido à morte de dois torcedores do Boca em um tiroteio entre facções do “La 12” (La Doce – A Doze – torcida organizada do Boca), ocorrido no dia 21 de julho.
De acordo com a organização “Salvemos Al Fútbol” (Salvemos O Futebol) mais de 336 pessoas morreram em ações levadas adiante por barra bravas desde 1958. Apesar dos esforços, a ONG diz se sentir em uma luta solitária, sem o apoio e sem os recursos necessários para a erradicação da violência.
Contudo, os atos criminosos por parte desses grupos organizados não se limitam aos enfrentamentos internos e externos. O movimento dos barra bravas está relacionado intrinsecamente com o narcotráfico, um dos negócios mais lucrativos do mundo.
Para a fundadora da ONG, Mónica Nizzardo, “o barra brava não está atento ao jogo. Está atento ao seu negócio, o das drogas”, disse no documentário “Entre Barras Bravas”, de 2011. Existem barra bravas que faturam até 60 mil euros (R$ 320 mil na cotação atual) ilícitos ao mês.
Na quinta-feira (15), o chefe de uma facção de barra bravas do Atlético Colón, Gabriel Alberto “Cachiporri” Nudel, foi preso enquanto vigiava uma grande plantação de maconha na província de Santa Fé. Em novembro do ano passado, o chefe da barra brava do Atlético Talleres, Darío Ramón Cáceres, foi condenado a oito anos e meio de prisão por liderar uma quadrilha de narcotraficantes que transportava maconha a várias partes do país. Junto com ele, outros 14 integrantes da banda foram julgados.
Ligado ao tráfico de drogas, os delitos de furtos também aumentaram. Em agosto de 2023, vários membros da barra brava do Platense foram acusados de terem assaltado mais de sete casas em dois bairros privados. O líder da quadrilha, Kevin Torres, de 26 anos, ainda está foragido.
Outros tantos crimes aparecem no legado dessas torcidas organizadas, como é o caso do chefe da barra brava do Atlético Rosario Central, Andrés “Pillín” Bracamonte, que foi acusado em dezembro do ano passado por ter sido um dos líderes de uma associação ilícita, por ameaçar a um sindicalista, por lavagem de dinheiro e por ter ficado com o dinheiro da venda do zagueiro Gastón Ávila ao Boca em 2019, realizada por 1,8 milhão de euros (R$ 9,6 milhões na cotação atual).
Política, sindicalismo e corrupção
“Tem que salvar o futebol das máfias organizadas que existem aqui, nos clubes de futebol junto com a política. O grande problema da Argentina, é que se juntam estes violentos barra bravas que fazem negócios dentro dos clubes de futebol e que ao mesmo tempo, durante a semana, são mão de obra dos sindicatos como também dos partidos políticos”, revela Nizzardo.
Com frequência, especialmente em clubes de menor renome, os barras bravas exercem uma influência econômica que muitas vezes supera a do próprio clube. Eles terminam tendo o poder de decidir quem joga e quem não, quem dirige a equipe e quem será derrubado. Nessas situações, as barras fornecem financiamento para o clube, o qual é utilizado para pagar salários de jogadores, despesas operacionais e até mesmo para garantir a segurança nos jogos.
Segundo o jornalista argentino Gustavo Grabia, autor de ‘La Doce – A explosiva história da torcida organizada mais temida do mundo’, lançado no Brasil pela Panda Books, se usamos como exemplo o dinheiro da barra brava do Boca, ela já transformou “cerca de seis, sete ou oito pessoas” em milionárias. “Estou falando de cerca de US$ 60 mil ao mês”, destaca o jornalista no documentário.
A obsessão pelo dinheiro é tão grande que os líderes dos barra bravas se vendem ao grupo que oferece mais, mesmo não sendo do time que eles torcem. Porém tudo isso só é possível devido a conivência e participação de grupos políticos e sindicais. É comum ver políticos buscando apoio nas arquibancadas para conquistar legitimidade através do clientelismo.
Durante sua presidência, Cristina Kirchner promoveu o projeto da ONG “Hinchadas Unidas” (HUA) composto por 80 grupos organizados. A ex-presidente financiou mais de 200 passagens aéreas com direito a estadia paga para a Copa do Mundo na África do Sul em troca de apoio para a sua campanha. Os barra bravas fizeram uso da visibilidade mundial para exibir diante das câmeras faixas e músicas em apoio ao kirchnerismo, e máscaras com os rostos da Cristina Kirchner e de seu falecido marido, Néstor.
Por sua parte, o sindicalista Hugo Moyano liderava, além da Confederação Geral do Trabalho da República Argentina (CGT), o clube Independiente, vencedor de sete Copas Libertadores, junto a seu filho, Pablo Moyano, onde são investigados por associação ilícita. Quem os denunciou foi o ex-líder dos “barra bravas” Pablo “Bebote” Álvarez que disse que o líder do Sindicato dos Caminhoneiros foi quem “assinou um fideicomisso” pelo qual circulava o dinheiro proveniente da compra e venda de jogadores e garantiu que “ele (Hugo Moyano) sabia que aquele dinheiro não iria ao clube.”
Barra bravas pelo Brasil e pela América Latina
Apesar de ter origem na Argentina, o fenômeno desses grupos organizados foi se espalhando rapidamente pela América Latina nos últimos anos.
Mas, ao igual que na Argentina, as barras bravas foram se convertendo em uma realidade cada vez mais preocupante. Além dos enfrentamentos internos, também foi denunciado a participação desses grupos em campanhas eleitorais e manifestações políticas.
Segundo um levantamento realizado pelo jornalista Rodrigo Vessoni, pelo menos 384 pessoas morreram no Brasil nas últimas três décadas em confrontos envolvendo torcidas de futebol. Apenas no ano de 2023, ocorreram diversos incidentes alarmantes envolvendo as barras bravas. Entre esses eventos, destaca-se a emboscada planejada por torcedores do Palmeiras contra dois ônibus da torcida do Corinthians e o falecimento da torcedora palmeirense Gabriella Anelli, de 23 anos, atingida no pescoço por estilhaços de uma garrafa durante uma briga com torcedores do Flamengo.
O mesmo cenário se repete nos demais países da região. A situação é tão grave que a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) teve que proibir a presença de torcedores em algumas partidas da Libertadores.
Durante o torneio, em fevereiro de 2013, um adolescente boliviano de 14 anos foi morto pelo impacto de um sinalizador lançado pela torcida do Corinthians enquanto assistia o jogo do San José contra o time brasileiro, em Oruro. Após este episódio, o Corinthians foi obrigado temporariamente a jogar em casa com as arquibancadas vazias.
Entre as barra bravas mais perigosas do continente americano destacam-se: “La vieja escuela” do Bolívar (Bolívia), “Avalancha Sur” do Deportivo Táchira (Venezuela), “Boca de pozo” do Emelec (Equador), “Muerte Blanca” da Liga de Quito (Equador), “Loucos Pelo Botafogo” do Botafogo (Brasil), “Trinchera Norte” do Universitario (Peru), “Comando Sur” da Alianza Lima (Peru), “Frente Radical Verdiblanco” do Deportivo Cali (Colômbia), “Comandos Azules” dos Millonarios (Colômbia), “Garra Blanca” do Colo Colo (Chile), “La Plaza y Comando” do Cerro Porteño (Paraguai), “Sur Oscura” da Barcelona Guayaquil (Equador), “Libres y Lokos” do Tigres (México), “La Banda del Parque” do Nacional de Uruguay (Uruguai), “Mancha alviverde” do Palmeiras (Brasil), “Los del Sur” do Atlético Nacional (Colômbia), “La Barra Amsterdam” do Peñarol (Uruguai), “Barón Rojo Sur” da América de Cali (Colômbia), “Los Borrachos del Tablón” do River Plate (Argentina), e “La 12” do Boca Juniors (Argentina).
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