Organizadas de forma espontânea em grupos de WhatsApp e sem grandes associações ou sindicatos liderando o movimento, os agricultores tomaram as ruas europeias em massivas “tratoraços”, forçando os governos e a União Europeia a agir. A queixa fundamental é o aumento da burocracia, o que implica exigências ambientais que limitam a produção.
Alemanha, França, Bélgica, Holanda, Espanha, Polônia, Grécia, Romênia… O contágio dos protestos no setor agrícola mantém a União Europeia (UE) em suspense diante de demandas com amplo apoio popular a apenas quatro meses das eleições para o Parlamento Europeu. O problema vem de longe, desde que em 2020 o Pacto Verde foi aprovado, impondo à Política Agrícola Comum (PAC) se adaptar às suas exigências. Isso se somou às reformas que a PAC vinha acumulando desde sua criação em 1956, aumentando os trâmites burocráticos e as condições para acessar os financiamentos, sufocando os agricultores e criadores.
José María Castilla, diretor do escritório da Associação Agrária – Jovens Agricultores (ASAJA) perante a UE, explica a partir de Bruxelas as chaves do mal-estar no campo. Atualmente, o setor agrícola sofre com a seca, o aumento dos custos de produção e a incerteza gerada pela guerra na Ucrânia, chave para a exportação de grãos para a Europa. “Neste contexto, entendemos que Bruxelas não deveria impor limitações à produção”, argumenta Castilla, pois esses fatores tornam muito difícil cumprir com os requisitos necessários para receber as ajudas econômicas da PAC. Requisitos que, além disso, prejudicam frente à concorrência estrangeira que não precisa cumprir esses padrões tão rigorosos.
Bruxelas cede à pressão
O efeito dominó foi desencadeado quando os agricultores saíram às ruas na Alemanha, um país menos propenso a protestos do que a vizinha França, por exemplo, que não demorou a aderir. “A união é total entre os agricultores europeus”, afirma Castilla. Longe das acusações de concorrência desleal feitas por políticos franceses contra o setor agrícola espanhol, ele explica que as associações de agricultores franceses “se envergonharam e pediram desculpas pelas declarações de seus políticos”. Em sua opinião, a França usou essa estratégia “para dividir o setor”. O assunto não prosperou, enquanto o que a pressão do setor agrícola sobre Bruxelas continua forte.
A preocupação com o impacto ambiental “alterou a ordem natural da função da agricultura: agora não é mais produzir alimentos, mas lutar contra as mudanças climáticas.”
Centenas de agricultores foram com seus tratores se manifestar na capital belga, sede do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia em 1 de fevereiro passado. Castilla destaca a rapidez com que a Comissão entrou em contato com eles para atender suas reivindicações: “Seja pela pressão ou pelas eleições, as instituições europeias têm medo”. Foi a própria presidente Ursula von der Leyen quem os chamou. Atendendo às demandas do setor, segundo Castilla, a Comissão se comprometeu a simplificar a burocracia da PAC, a não realizar o acordo comercial com o Mercosul, a permitir que o criador se defenda do lobo [espécie protegida que ataca o gado impunemente], a regulamentar as novas técnicas genômicas (NGT em inglês) para que possam ser usadas na Europa — o que reduziria o uso de fertilizantes e produtos fitossanitários — e a melhorar a lei da cadeia agroalimentar para proibir a venda com prejuízo.
À espera de que essas promessas se transformem em leis e com as eleições europeias tão próximas, Castilla tem certeza: “somos nós que temos a faca e o queijo na mão e vamos pressionar até conseguir o que queremos”.
Necessidade de reformas ou problema estrutural?
A partir dos anos 90, a PAC teve a necessidade de se adaptar às exigências de livre mercado e ambientais introduzidas pela Cúpula do Rio de 1992 e pela Rodada do Uruguai, que culminaria com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995. “Em vez de propor um novo modo de desenvolver a política agrária, decidiu-se modificar o existente, o que sempre implica assumir direitos adquiridos”, explica Juan Urbano, engenheiro agrônomo. Portanto, naquela ocasião, perdeu-se a oportunidade de realizar uma reforma estrutural talvez necessária após quase 50 anos de PAC. “Naqueles momentos se falou de renacionalização da política agrária, mas nem os burocratas da UE nem os representantes nacionais estavam interessados — aponta Urbano — possivelmente pela distribuição orçamentária e porque interessa ter um legislador responsável fora das fronteiras para culpar.”
O contexto institucional global descrito, expõe este especialista, levou à reforma de 2003, na qual “as ajudas aos cultivos foram desvinculadas e até prevê a decisão técnica de não semear ou colher sem perder a subvenção”. Assim, “cria-se uma ‘aristocracia’ com direito a cobrança” que, além disso, “costuma beneficiar aqueles que mais recebiam antes da reforma”. É neste momento que o enfoque ambiental da PAC vai se acentuando como justificação das políticas e como condição para receber as ajudas. “Desde 2003 se fala em simplificar a PAC, mas a realidade é que cada reforma a torna mais complexa para o agricultor e as administrações, porque inclui novos aspectos a serem subvencionados, com sistemas de controle próprios, incluindo a coerência com outras medidas não próprias da PAC”, explica Urbano. Este é o caso do Pacto Verde aprovado em 2020.
Essa preocupação com o impacto ambiental do setor agrícola “alterou a ordem natural da função da agricultura: agora não é mais produzir alimentos, mas lutar contra as mudanças climáticas.” No entanto, “o ruído midiático da poluição agrícola é desproporcional se considerarmos o impacto real”, muito aquém da produção de energia ou do transporte, aponta Urbano.
“Não somos contra o Pacto Verde”
Uma das coisas que ASAJA esclarece é que não são contra a PAC ou o Pacto Verde. Querem fugir da polarização entre agricultura e ecologia, ou do confronto entre o campo e a cidade. “Não somos contra o Pacto Verde, mas contra como foi elaborado”, esclarece Castilla. Enquanto essa iniciativa de política ambiental estava em tramitação, Frans Timmermans, então vice-presidente da Comissão Europeia, não levou em consideração o comissário da Agricultura. Das associações de agricultores europeus, “criticamos, mas não tivemos resposta”, denuncia Castilla.
Outra das irregularidades no contexto da aprovação do Pacto Verde foi que “Timmermans escondeu em uma gaveta um relatório do Joint Research Center (JRC), que coincidia com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) e com a Universidade de Wageningen.” Segundo Castilla, este relatório alertava para quatro consequências da aplicação do Pacto, cada uma resultante da anterior: a queda na produção agrícola, a queda na renda agrária, o aumento no preço dos alimentos e o aumento das importações de outros países. Nesse sentido, as demandas dos agricultores são claras: que se leve em conta a evidência científica, não apenas os interesses políticos, e que a estratégia de sustentabilidade seja apoiada em três pilares: o social, o ambiental e o econômico. “Não se pode fazer uma PAC verde com números vermelhos”, sentencia Castilla.
A PAC beneficia o consumidor, mas distorce o mercado
No que diz respeito ao comércio exterior, a PAC é um entrave para a competitividade europeia, pois as exigências são muito maiores do que em outros países. “Gostamos de mercados e de competir”, esclarece Castilla, “mas em condições de igualdade”. Essa é a maior dificuldade que os agricultores europeus têm, pois competem com países que têm padrões trabalhistas mínimos, países que desfrutam de benefícios fiscais ou não precisam pagar pelos recursos hídricos; sem restrições no uso de certos produtos fitossanitários e fertilizantes, etc.
A pergunta é se as reformas são suficientes ou se é necessário um novo planejamento e uma nova PAC para enfrentar essa crise e prevenir as futuras.
More Stories
Biden anuncia ajuda ao RS e se solidariza com vítimas de enchentes
Putin demite ministro da Defesa e apresenta novo nome ao cargo
Erdogan volta a comparar premiê israelense a Hitler