Cerca de dez anos atrás, quando eu era uma jovem professora assistente no Bryn Mawr College e recém-chegada à universidade, fiquei surpresa quando uma das minhas alunas reclamou sobre ‘Metamorfoses’, de Ovídio. Especificamente, sua preocupação era com a falta de sensibilidade de Ovídio sobre o tema do estupro. ‘Metamorfoses’ é um compêndio poético dos mitos da Grécia e Roma antiga; um de seus temas mais comuns é o erotismo dos deuses masculinos que perseguem mulheres. Fiquei particularmente surpresa com o comentário da aluna porque o texto elegante e espirituoso de Ovídio é notavelmente simpático às personagens femininas. Mas eu sabia que as estudantes do Mawr eram famosas pela intensidade de suas convicções; faz sentido que estudantes de um colégio de mulheres posicionem-se tão fortemente contra a violência às mulheres.
Nos anos seguintes, descobri que, na verdade, as ‘Metamorfoses’ eram uma oportunidade para a sinalização de virtude, não apenas para os estudantes, mas também para acadêmicos profissionais em universidades americanas. É típico que uma palestra pública sobre as ‘Metamorfoses’ de Ovídio comece com um aviso sobre estupro e um convite aos membros da audiência para se sentirem à vontade para sair da sala.
Eu nunca consegui entender completamente como os ouvintes poderiam ser traumatizados por descrições ovidianas de violência sexual. Aqui está, por exemplo, uma das mais famosas: “enquanto [o deus Júpiter] falava, [a ninfa Io] fugiu, [ . . .] mas o deus invocou uma sombra pesada que envolveu a vasta terra e interrompeu sua fuga e violou, naquela nuvem, sua castidade.” Mas eu dei a eles o benefício da dúvida.
Quando terroristas do Hamas atacaram Israel em 7 de outubro, eles não apenas assassinaram centenas de crianças, idosos e mulheres e sequestraram centenas mais, mas também perpetraram sistematicamente brutais estupros coletivos, completos com mutilação e outras formas de violência desumana contra mulheres. Em um relato de testemunhas, depois que os terroristas terminaram de estuprar uma mulher — e enquanto ela ainda estava viva — cortaram um de seus seios e estavam chutando-o uns para os outros como uma bola de futebol na poeira. Em outro, uma mulher estuprada suplicou aos terroristas para atirarem nela — o que fizeram, depois que todos no grupo tiveram sua vez com ela.
Estou detalhando conscientemente esses fatos — fatos tão brutais que é ultrajante até mesmo colocá-los por escrito, e ainda cuja brutalidade exige que sejam registrados para a posteridade. É especialmente importante fazê-lo, dado que grande parte do mundo fez ouvidos moucos — ou, pior, negou descaradamente — a essas atrocidades contra mulheres e meninas israelenses.
Acadêmicos e estudantes em todo os EUA elogiaram o ataque de 7 de outubro como “heroico” e “um feito”. A congressista do estado de Washington Pramila Jayapal surpreendeu um apresentador da CNN ao evitar adotar uma posição firme contra os estupros perpetrados pelo Hamas. A ONU Mulheres esperou dois meses antes de começar a responder a relatórios forenses detalhados das atrocidades do Hamas contra mulheres.
Segundo o porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller, o Hamas se recusou a libertar mais reféns femininas porque os terroristas não queriam que as mulheres detalhassem o que sofreram em cativeiro. Nos últimos quatro meses, mulheres israelenses capturadas têm sofrido violência sexual, enquanto muitos no mundo acadêmico permaneceram em silêncio.
A vitória sobre o Hamas deveria ser uma prioridade para qualquer pessoa que afirme se importar com os direitos das mulheres. Eu esperava que minha própria instituição, Bryn Mawr, estivesse à altura de sua missão como faculdade de mulheres; que, em todo o país, os mesmos estudantes e professores que não suportam ouvir como “Júpiter violou a castidade de Io” se manifestariam em massa para condenar publicamente os estupros e mutilações do Hamas e apoiar a eliminação do grupo; que esses mesmos estudantes e professores acusariam publicamente o Hamas de continuar mantendo reféns, de usar civis inocentes como escudos humanos e de colocar em perigo os civis palestinos ao se recusar a capitular. Em todas essas expectativas, eu estava enganada. Talvez a cultura de alertas de gatilho, com seu autoenvolvimento e ênfase nas queixas, tenha tornado nossas comunidades acadêmicas incapazes de tomar uma posição moral contra a violência autêntica e selvagem infligida a outros seres humanos.
Em um dos mitos mais sombrios de Ovídio, depois que o rei trácio Tereu corta a língua da princesa ateniense Filomela para que ela não possa contar a ninguém que ele a estuprou, Filomela encontra uma maneira de transmitir sua história ao retratá-la em uma tapeçaria. Ao longo dos últimos quatro meses, vítimas israelenses de estupro foram ignoradas por jornalistas, acadêmicos, estudantes universitários, políticos e representantes da ONU, mas lentamente, contra todas as probabilidades, suas histórias estão vindo à tona. A pergunta para a academia americana é: de que lado ela ficará — de Tereu ou de Filomela?
Asya Sigelman é professora associada de Clássicos no Bryn Mawr College. Ela ensina grego antigo e literatura latina, incluindo as Metamorfoses de Ovídio.
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